segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

O Uso da Memória e da História na Legitimação do Passado

Para Pierre Bourdieu, sob todos os aspectos, o Estado aparece para nós como um poder de repressão legitimado pelas sociedades tanto civil quanto política e ao mesmo tempo, este poder tenta justificar sua perenidade através da violência física e simbólica, ou seja, o aparelho de regulação estatal pode ser entendido como uma ação consciente, mas que mascara uma outra inconsciente. 1
Em uma perspectiva homogeneizadora, a cultura aparece como instrumento principal de organização estatal, em que o intelectual ganha posição central na disseminação dos códigos culturais legitimando ou não legitimando algum ato.
Sendo assim, até mesmo os movimentos dirigidos contra o Estado inconscientemente pedem a sua legitimação.
Com isso, podemos compreender o Estado como um conjunto de instrumentos de poder tanto físico quanto simbólicos encontrados na sociedade.
Assim, é através da violência simbólica que o Estado atua no inconsciente em determinados grupos sociais atingindo seus modos de pensar o mundo e consequentemente pensar o próprio Estado. Portanto, a construção do Estado caminha em paralelo com a construção de instrumentos de poder.
De acordo com a célebre definição de Max Weber, o Estado detém o monopólio da violência legítima na sociedade.
Esta idéia parece para nós um pouco simplista, porém bastante sedutora, pois em sociedades organizadas como a que vivemos a violência privada é ilegítima. Portanto, a violência legítima só pode ser aplicada pela autoridade política central ou por aqueles que ela delega este direito.
Assim, observamos que entre as várias sanções aplicadas à manutenção da ordem, a mais radical de todas, a força, só pode ser aplicada por uma instituição social específica claramente identificada, bem centralizada e disciplinada. Estas instituições ou o conjunto dessas instituições é o Estado.
Nesse sentido, podemos entender que o poder da violência tanto física quanto simbólica foi usado em larga escala pelos aparelhos de repressão do Estado.
No uso da linguagem pelos jornais imposta pelo aparelho de repressão do Estado podemos considerar uma forma de demonstração do poder simbólico. É através dessa demonstração de força que a repressão tentará legitimar o golpe.
Mas é também no silêncio que podemos identificar a ação simbólica da repressão, ou seja, o não dito assume um importante papel na disseminação da ideologia dominante. Desse modo o silêncio está no dizer e também no não dizer.
Durante o processo de redemocratização e o início da nova república no Brasil surgiram enormes quantidades de relatos biográficos e autobiográficos acerca da memória do período militar, mais precisamente de pessoas que tiveram envolvimento com a luta armada.
Em grande parte dessas obras encontramos certo anacronismo, pois a narrativa apresenta uma idéia em que os protagonistas dos acontecimentos acreditavam que todo confronto armado não tinha como dar certo, ou seja, eles não alcançariam seu objetivo final. Porém, as análises do período demonstram que não era bem isso que eles imaginavam na época. Ninguém luta por um ideal pensando no fracasso. Assim, a história também trabalha no processo de seleção da memória tentando conferir – lhe sentido. Nesse processo de seleção e construção da memória são travadas verdadeiras batalhas entre grupos sociais que desejam legitimar o presente através da reconstrução do passado.
Nesse sentido, a memória vai sendo construída de acordo com o momento político. Nas palavras de Daniel Aarão Reis: “sempre quando os povos transitam de uma fase para outra da história, e quando a seguinte rejeita taxativamente a anterior, há problemas de memória, resolvidos por reconstruções mais ou menos elaboradas, quando não pelo puro e simples esquecimento3”.
No caso da memória sobre o golpe de 1964, ela foi construída a partir de uma relação dicotômica entre a sociedade civil e os militares golpistas. Desse modo, a memória sobre o golpe foi construída como se os militares fossem os únicos responsáveis pelo regime de terror e que nunca teve o menor apoio por parte da sociedade civil como um todo. Mas se isso fosse verdade, como explicar por que a ditadura não foi simplesmente escorraçada?4
A luta armada caiu na mesma armadilha. Nos anos oitenta, a construção da memória acerca da luta armada foi inserida em uma perspectiva de resistência democrática contra a ditadura. Tal perspectiva tende a ocultar o verdadeiro significado da luta armada. De acordo com a Dra. Denise Rollemberg, os valores democráticos não estruturavam a sociedade brasileira, portanto, as esquerdas revolucionárias não tinham a democracia como valor supremo5. Idéia também compartilhada por Marcelo Ridenti, aonde ele chega à conclusão que se a ditadura era antidemocrática, as esquerdas revolucionárias também eram6. Sendo assim, fica também evidente que, além de ser antidemocrático o projeto de luta armada é anterior ao golpe de 1964.
A relação das Ligas com Cuba evidencia a definição de uma parte da esquerda pela luta armada no Brasil, em pleno governo democrático, bem antes da implantação da ditadura civil-militar. Embora não se trate de uma novidade, o fato é que, após 1964, a esquerda tendeu - e tende ainda - a construir a memória da sua luta, sobretudo, como de resistência ao autoritarismo do novo regime. É claro que o golpe e a ditadura redefiniam o quadro político7.
No entanto, a interpretação da luta armada como, essencialmente de resistência, deixa à sombra aspectos centrais da experiência dos embates travados pelos movimentos sociais de esquerda no período anterior a 19648.
Assim, as reconstruções da memória foram feitas a partir das perspectivas democráticas dos anos 80, as reconstruções, no mínimo anacrônicas, foram criadas para legitimar o presente objetivando inserir os atores sociais envolvidos na luta armada aos novos projetos políticos do país sob uma ótica democrática.